Não é um vinho tranquilo. Das palavras usadas por quem sabe para descrever o champanhe - e depois de dois dias a beber mais do famoso vinho do Sudeste de França que durante um quarto de século de passagens de ano, aniversários e casamentos - esta acaba por ser a que assenta melhor. Em francês, serve simplesmente para identificar um vinho que não é gaseificado. Entre nós, pode ajudar a explicar o dilema de quem não domina as revelações da enologia: não fica bem recusar, mas dificilmente se percebe onde é que os esforçados viticultores que nos recebem em Epernay, capital da região de Champanhe, ao lado de Reims, vão buscar os aromas a cerejas, framboesas, tâmaras ou banana.
Depois de algumas explicações, fica pelo menos mais clara a nomenclatura: as classificações habituais de bruto, seco, semi-seco dizem respeito à quantidade de açúcar que se junta ao vinho já engarrafado mesmo na última fase de produção. Um "millésimé" é um vintage, um lote com a colheita de um único ano - e, para juntar alguma informação de bagagem, os grandes anos da última década são 2000 e 2002. O resto, grosso modo, são "não-millésimés", vinhos que reúnem colheitas e reservas de vários anos.
Para degustar, gira-se o copo - em forma de tulipa, que as flûtes, apesar do nome, não são a medida oficial de champanhe - e sorve-se devagar, com uma aspiração pelo meio para que o oxigénio reforce o paladar. Posto isto, até agora o melhor desempenho possível foi distinguir um champanhe novo de um mais velho (ficam mais doces com a idade) e um encorpado de um levezinho - avaliação mais que negativa para qualquer aspirante a champagnois (alguém que, sendo de Champanhe, desconhece - ou ignora propositadamente - o que é beber vinho tinto às refeições).
Estamos então no epicentro do vinho de luxo, Epernay, hora e meia a sudeste de Paris, em pleno vale do Marne, a convite do Comité Interprofissional do Vinho de Champanhe (CIVC), uma organização que junta produtores e sindicatos da região, dá aconselhamento técnico e faz a divulgação da região além-fronteiras. O CIVC faz 70 anos em 2011, ano que assinala também o centenário da revolta de 1911, quando os champagnois começaram a lutar pela denominação de origem controlada - conseguida em 1927. Nessa altura pediram aos vizinhos de Aube (hoje dentro da zona certificada) que escrevessem "champanhe de 2.a categoria" nas garrafas e acharam que a única forma de recuperar da crise provocada pela praga da filoxera seria arranjar formas de reordenar a vinha - surgindo o método moderno de enxertagem - e deixar de depender de uvas de outras regiões.
Hoje o proteccionismo faz-se noutras frentes, conta Philippe Wibrotte. A região soma mais de 2 mil casos judiciais contra o uso abusivo do nome "Champagne" em espumantes californianos e russos ou em produtos menos evidentes, como uma água engarrafada para cães e gatos. Mesmo os conhecidos palitos de champanhe são, segundo o CIVC, ilegais.
Epernay fica no coração das três grandes zonas de denominação de origem controlada: a montanha de Reims - que atinge os 200 metros de altitude - o vale e a Côte des blancs. Além de ser obrigatório às refeições e nas degustações em todas as pequenas aldeias e vilas, o champanhe é o único tema de conversa na semana em que arranca a vindima, 20 dias mais cedo do que seria normal depois de uma Primavera quente. Para algumas casas, como a Champagne Bollinger, que há 40 anos fornece garrafas de champanhe aos filmes do James Bond, a data é um recorde em 150 anos. A regra tem a ver com a maturidade das uvas: à partida, a vindima começa 100 dias depois da primeira floração, este ano a 22 de Maio, em Mutigny, uma aldeia de 230 habitantes onde é possível fazer uma visita guiada a uma vinha tradicional.
6 mil postos de trabalho A apanha da uva muda a demografia da região. O centro de emprego de Epernay abriu 6 mil postos de trabalho só para as vindimas, mas todos concordam que onde há vinha existe tradicionalmente menos desemprego que no resto do país. Se durante décadas a vindima era usada pelos mineiros para descansar os pulmões, hoje nota--se, sobretudo, a presença de jovens e estrangeiros da Europa do Leste. As caravanas espalham-se pelas bermas da estrada e a polícia tem montada uma operação para controlar a condução sob efeito de álcool e drogas. Cada jornada de trabalho - paga consoante a uva apanhada - pode render 150 euros, conta Alexon Delabare, que encontramos numa vinha da Moët & Chandon em Mutigny. A semana de trabalho varia entre 60 e 72 horas. "O champanhe tem um preço de luxo porque nos dá imenso trabalho todo o ano. É o preço justo."
A tradição ainda comanda as operações, explica Philippe Wibrotte. A uva dos 35 mil hectares de vinha autorizada para a produção de champanhe tem de ser apanhada à mão, só é permitido colher 12 500 quilos de uva por hectare (dá para 10 mil garrafas) e as únicas castas autorizadas na receita champagnois, salvo raras excepções, são as centenárias pinot noir (que dá corpo ao champanhe), chardonnay (frescura e vivacidade) e pinot meunier (aroma frutado). Ainda assim, o sector atingiu o ano passado 4,1 mil milhões de euros de receitas, com previsão de aumento da procura. Depois de uma quebra global nas exportações de 16% em 2009, 2010 voltou a ser ano de crescimento, sobretudo nos países emergentes. Só o ano passado as vendas cresceram 89,9% na China ou 63,2% no Brasil.
Aumentar a produção e as vendas será compatível com uma marca de luxo? A resposta é difícil, admite Stephen Leroux, director comercial da Champagne Bollinger. A casa que fornece a família real britânica desde 1884 (Leroux demonstra a ligação com a fotografia de Kate e William com uma garrafa Bollinger na festa de noivado) está sedeada em Ay, uma das vilas onde a vinha tem classificação de 100%, ou seja, nos rótulos podem escrever "Grand Cru" - à partida, o champanhe mais caro. Nesta zona, já na montanha de Reims, o hectare pode valer 2 milhões de euros, mas é raro haver parcelas disponíveis.
O último grande negócio em Champanhe foi a venda da casa Piper-Heidsieck à empresa francesa EPI, em Junho, por 412 milhões de euros. A marca de champanhe, com 226 anos, tem neste momento 65 hectares próprios mas compra a produtores e cooperativas e vende 9 milhões de garrafas por ano. A diferença em relação a Bollinger, explica o nosso primeiro anfitrião, Christian Dennis, é que esta se mantém uma das poucas grandes marcas (2,5 milhões de garrafas por ano) com gestão familiar. A preocupação com a tradição é a imagem de marca, revela. Os vinhos de reserva, que a maioria dos produtores guarda em barricas, estão dispostos em garrafas ao longo dos 5 quilómetros de cave a 12°C. Nos vinhos vintage utilizam rolhas de cortiça ao longo de todo o processo, enquanto a maioria das casas faz o primeiro engarrafamento com uma cápsula. A técnica permite controlar melhor a oxigenação do vinho e a pressão, explica Dennis. No final, a garrafa tem uma pressão de seis atmosferas, duas vezes a do pneu de um automóvel.
"Uma casa sem uma imagem de marca não é nada. No nosso caso somos muito anglo-saxónicos. Escolhemos onde e como queremos estar em cada país", resume Leroux. Perante o aumento da procura dos países emergentes ou de novos mercados de luxo, como Angola, o responsável acredita que é preciso avançar devagar, para manter a coerência da marca, mas também para evitar desvios de mercadoria. Esta semana, uma encomenda de 7 mil garrafas para Angola, 10% do consumo normal anual, levantou algumas suspeitas. "Temos situações de mercado paralelo, onde as garrafas são compradas por um determinado distribuidor para depois chegarem a outros mercados. Temos uma postura de intermediários directos, conhecemos os nossos clientes."
Quanto ao futuro, há visões distintas. Pequenos e grandes produtores concordam que Champanhe não vive sem as grandes marcas, mas vender mais ou ser mais conhecido não deve ser entendido como sinónimo de máxima qualidade. "O nosso interesse não é propriamente aumentar as vendas, mas melhorar a qualidade e ir aumentando o preço. Mas já estive do outro lado: são 100 mil garrafas? Negócio fechado", diz Leroux.
Um produtor mais pequeno, como a casa R. Pouillon et Fils, tem pretensões de entrar para o clube dos 2% de vingnerons que produzem champanhe biológico, conta o actual gestor, Fabrice Pouillon. A família Pouillon entrou no negócio em 1947 e faz questão de tratar da vinha e de todo o processo de vinificação. Fabrice é neto do fundador e tem por sua conta 15 hectares, que dão 100 mil garrafas por ano. "Uma pessoa que só negoceia não conhece a uva. A minha visão do negócio é integral. Quando recebo caixotes da vindima conheço a história do que estou a vender. Com uma abordagem mais inteligente podemos melhorar a qualidade e proteger o ambiente." A cave simples contrasta com os 5 quilómetros de arrumos da Bollinger. O champanhe, por seu lado, exerce uma atracção especial, mais que não seja pelo entusiasmo do empreendedor de 35 anos que todos os anos cria uma nova combinação de castas com a mulher e produz champanhe rosé através de uma técnica de maceração em que o vinho ganha cor através da descoloração da pele e não da junção de sumo de uvas pretas e brancas. "Não digo que o meu avô trabalhava mal, mas hoje temos de pôr em prática técnicas novas. Não sou muito favorável a haver mais áreas de produção. Não nos podemos esquecer que o champanhe representa 1% dos vinhos gaseificados do mundo. A quantidade não vai ser a forma de nos afirmarmos, temos de ir pela qualidade."
Fonte: ionline.pt / Marta F. Reis,
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